segunda-feira, 13 de julho de 2020

dos animais nocturnos


Pequenos fogos
ardem no esterno.

Externos ao corpo
alojados entre os ossos
bateres de asas
no peito aberto, ainda,
aos restos de amor hesterno
esperando outras labaredas.

As dúvidas da língua
são paulatinamente
guardadas no palato véu
nocturno céu da boca dos gatos
barriga esperando a queda dos pardais
ou de outro pássaro qualquer
desde que seja golpe de asa.

e eu sempre quis ser lobo
sem nunca lhe vestir a pele.

[and I always wanted to be a wolf
without ever dressing your skin.]


https://www.youtube.com/watch?v=E5_aFABkSo8

segunda-feira, 29 de junho de 2020

a espuma dos dias

amar a espuma dos dias
um gato aninhado nos braços
um pássaro, coração, abrigado nas mãos
borboletas, flores. O mar.

com que palavras dizer de tudo?
quão simples e complexo é o  mundo.
desenhar nas nuvens deuses antigos
que não respondem
e os oráculos falharam
não previram a condição humana
que se crê imutável e invencível.
perto de nós é a distância que impera
e é esta mesma distância que define
as horas caninas
que antecedem a noite de um farol
que ainda arde, à vista,
resta a luz cegando.

o escuro devorando as ondas
mordendo as vagas como pedaços de carne
e toda a fauna marinha encalhada
a meus pés
areia e sal. rochas.
com que palavras?
se é feita de silêncios a hora perfeita?
áurea excelência, dourado crepúsculo
do céu o sol cai sereno,
adormece sobre o orla do mundo
acenando à boa noite.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

nada sei


Eu nada sei  da escrita. não sei nada de desenho, nada sei da fotografia.
e no entanto, escrevo, desenho, fotografo... Não estou a falar da qualidade da coisa apenas da sua existência.
a volúpia criadora não nos escolhe pelos nossos conhecimentos, ou pelo domínio da técnica ou ferramenta, mas pela centelha que nos habita, quer queiramos ou não, está lá e quer existir.
Eu não sou feliz na escrita. Mesmo a escrita feliz é sempre triste, porque a dúvida e a inquietação estão sempre presentes, em cada palavra em cada verso. O sim e o não, o certo e errado. Ao contrário das outras áreas de expressão criativa, que a dúvida é criadora, nesta a luta interna é enorme e muitas vezes castradora,  e o pêndulo balança sempre entre o escrever e não escrever . O respeito e amor pela língua mãe tolhe-me os dedos mas não o pensamento, chegam até mim tantas palavras que querem ser escritas mas nunca se materializam.

Bem isto já pareço o Yoda. "Do or do not, there is no try"

sábado, 13 de junho de 2020

maçã


pecado, ainda verde, na boca
mordo a maçã, sumo
e sou dúvida ao lábio
que me ferve as veias
à mão que colhe a alma
fruta já feita, maduro ventre.
e pulso ao latejar
vermelha argila,
pó, corpo
da terra
ao céu 
da boca aberta
ao firmamento
de estrelas.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

ao vento


ausente da seara,
na noite silenciosa,
o vento.
e um mundo de espuma nas mãos
vagas junto à luz, vulturnus
que conta e canta o canto
longo poema por escrever
próximo e distante
reunido e disperso
aos quatro pontos cardeais
Éolo desperta
violento, suave, tempestuoso e quente
Bóreas, Zéfiro, Euro e Noto
ilusórios mitológicos
num só, uno sopro
filhos do céu e da terra
uivando

quinta-feira, 11 de junho de 2020

cor da pele

Cor - Impressão que a luz reflectida pelos corpos produz no órgão da vista.

quero um  campo de papoilas onde olhar o céu azul.
entardecer em maré vaza, para pisar solo que já foi mar
Se Abril para mim é Cravo, Maio é papoila.
Mas Maio passou e Junho já se adianta.

"I can't breathe!"

Sou descendente de escravos
construtores, forçados, dos arrozais de alcácer-do-sal
Sou descendente de pescadores
Sou descendente de operários, agricultores!
Nunca vi o vermelho do solo africano
nunca lhe senti o cheiro, em dia raro de chuva
mas sinto-lhe a falta.
A minha costela europeia e a minha costela africana
coexistem debaixo da mesma pele
o mesmo corpo, coração, carne
não há guerra entre elas, mas inquietação
mágoa, sim, do velho continente escravocrata
amor ao meu país, mas sem esquecer  o passado.
Orgulho da gente trabalhadora, da qual descendo
orgulho da minha raíz negra, resistente
orgulho da minha gente amante do mar
orgulho da humanidade da qual provenho
sem rotulo, sem cor, sem descriminação
filha de eva, pecado original; Mulher!
O mundo dói-me
fere até à medula
o estentor fascista, verme roendo a maçã
virus, corona di spine,
virus, racismo rotula,
esmagando traqueias,
o estertor, inicial ralo" I can't breathe "
agiganta-se e se faz  omnipresente
"The Times They Are a-Changin"?

quinta-feira, 21 de junho de 2018


Existe um espaço no centro do coração que não julga, não lembra e não questiona. Faz, cuida, ama. Está presente quando todos os outros se ausentam.
Passaram 18 anos. Para trás uma mulher doente esperando a sobrevida, broto que se faça ficatu. Quatro filhos, dois menores.
Faz as malas e mudasse para outras paragens.
"-Estão todos criados" palavras da mãe actos dos filhos na ausência de pai e cuidados contínuos da mãe em tempos de espera.
As doenças perlongadas são a falência financeira e emocional das famílias, esta não foi exceção. Ou melhor foi porque a jangada que restou ainda flutua é emocional unida e próxima.

Quantas companheiras, mulheres, amantes cabem numa vida? Vêm e vão ao redor da cama mas nenhuma fica.

Despe-se da pele gasta e definha. Só alma, longas conversas. Só Ossos. Só fragilidade.
Todos morremos sós mas ninguém deve morrer em solidão.

sábado, 16 de junho de 2018

...

um paliativo de cada vez
meu pai está a morrer.

O senhor da cama ao lado dorme
e um sol imenso inunda o quarto de luz.
hora de almoço
chegam ao quarto, vindos do corredor,
cheiro a sopa, café, éter
vozes, conversas e risos
"Então! vamos comer?"
alimenta-se a vida,
finta-se a morte,
dá-se amor,
uma colher de cada vez.

domingo, 29 de outubro de 2017

divago...

Mas isto sou eu que já não sei nada
e do nada pouco resta rente a meus pés
flores e sol-posto de verão vestido
dedos finos por entre a folhagem, luz.

Está calor em outubro quase novembro
põe-se a noite, a janela aberta
em pleno firmamento iluminado, estrelas.

A laranjeira em caos deixa morrer os frutos,
queda livre em direcção ao pouco verde
e um outono estranho com sabor a verão arde,
muda a hora e começa de novo, dia.

Já não escrevo, bem sei,
mas a poesia dos outros ainda me habita
os dedos, os olhos, nervos,
sentidos      versos escritos cheios de alma
no fim; do poeta só resta o poema?

terça-feira, 11 de julho de 2017

e o mostrengo rondou
a alma, três dias,
lembrando que o coração,
ainda e sempre,
é mais do que eu

boa noite querida insónia