quinta-feira, 8 de maio de 2014

Podia falar da primavera que desponta e das andorinhas em voo livre que vejo desta janela. De como o ar quente toca a pele com carinho afastando o frio que me consume os ossos. Do sol que entra pelas vidraças e que torna um pouco mais fácil trabalhar em dias lindos. Podia falar de como fiquei feliz no 25 e no 1 de ver gente na rua e que trouxe para casa, nas mãos, cravos. Hoje, falo antes da melancolia que me toma no após e que me rouba a vontade de falar, de escrever por me parecer sempre tão menor e pouco.

Este corpo decidiu nascer tarde e não lembra "O dia inicial inteiro e limpo" o desfecho de muitas lutas travadas por muita gente, vidas que se entregaram e morreram pela liberdade e não só, porque Abril não é só liberdade.
Também não lembra o antes e essa parte ainda bem.
Mas não lembrando, por não ter vivido, quis saber, porque a memória individual é sempre pequena e parcial, mas a memória colectiva feita de todas as historias contadas, as que estão registadas por escrito e as outras todas, muitas, contadas apenas entre os amigos e a família e que falam da fome, da guerra, da tortura e do silêncio que o medo trazia às bocas, essa perdura e não deve ser esquecida com o perigo de se repetir.

"- Quando tinha oito anos andava ao trapo e carregava bilhas de leite maiores que eu. Subia as ruas de Lisboa a pé a fazer entrega de porta em porta".
"- Aos 14 era aprendiz de costureira trabalhava de dia e trazia trabalho para casa, à noite bordava a canotilho à luz do petromax"
"- Comíamos todos do mesmo prato, eu os meus três irmãos e a minha mãe, cebolas, batatas e duas sardinha. Leite? Só quando estávamos doentes."
“- Fiz a 4ª classe. Era a melhor aluna da turma mas não pode continuar a estudar, tive de ir trabalhar."
“- O meu irmão com 14 anos trabalhava com o meu pai numa fábrica de tanques, aqueles feitos em cimento que eu usava para lavar roupa para fora ao fim-de-semana, tinha 11 anos.O meu pai morreu dois anos depois com o mal nos pulmões”
"- Cá vai a malta do casal ventoso panela às costas para a sopa do barroso..."
"(mulher de um ex-combatente do ultramar) - Acorda quase sempre a meio da noite aos gritos. Fala do tempo da guerra mas sempre muito ao de leve e fala mais da camaradagem e dos amigos que fez e que viu morrer. ( Mostra o álbum e a boina das forças especiais imaculadamente guardada) Mas das histórias mais duras não quer falar. Diz que o que fez no ultramar nem na hora da morte conta"
“ - Consegui o meu primeiro par de sapatos aos 16 anos.”
“ - Tinha de correr quase todos os dias a fugir da pide quando começaram as perseguições aos estudantes. Não me calava. Estava, 'marcado como agitador', para ser preso nessa samana. Não fosse o 25 tinha ido como os outros a meio da noite."
E tantos outros e tantas outras...

Eram tantos nas ruas, e muitos deles com histórias destas e memórias destas e outros que não as tendo não deixam que se esqueça ou se aligeire a História. Mas são sempre poucos mediante o que se passa…

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